Faixa Bônus é um espaço dedicado a registros sobre assuntos variados, extras do último podcast, comentários sobre filmes, seriados, aquisições e leituras de novos ou velhos quadrinhos, enfim, de tudo, um pouco. Preparados?

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Conferindo as estatísticas do podcast nesse ano, um dado de 2019 se repetiu em 2020: a série de programas Sandman Anotado continua sendo o nosso campeão de audiência. Toda semana tem sempre alguém descobrindo nossos podcasts dedicados ao Sonhar e – esperamos! – iniciando uma prazerosa maratona com os dez episódios já publicados. A ideia era fechar o ano com o sétimo arco, Vidas Breves, mas todos nós sabemos que dezembro é um mês desafiador, em que cada um, à sua maneira, está fechando um ciclo e quer um tempo para si ou com sua família. Nada mais justo, afinal, todos no nosso entorno foram testados nesses últimos 365 dias. Você também, imagino. 

Eu, o Luwig, me sinto em dívida com todos os meus amigos que estiveram junto comigo do outro lado, equipados com microfones, dedicando tempo às pautas e bem mais além, seja em momentos de descontração seja dividindo angústias e dores. Daí me pego lendo feedbacks no Instagram ou no Twitter e me dou conta que essas trocas também são capazes de retroalimentar o ânimo de alguém. Então, fico feliz que parte de nossas interações, editadas e transformadas em podcasts, também tenham ajudado ouvintes a se descontrair e atravessar suas próprias angústias e dores.

Chego agora aonde quero chegar, pois, no fim, e no íntimo, fico me perguntando se depois disso tudo seremos outras pessoas, se  serei outra pessoa no ano novo. Ok. Meu grilo falante fica no meu juízo dizendo que “ninguém muda e o máximo que pode ocorrer é que–“; e eu não me oponho a isso, mas como trouxe o Morpheus à tona, vamos lá.

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Na introdução de Sandman: Noites Sem Fim (Panini Books, 2014) há uma pequena menção de Neil Gaiman sobre a abordagem de um leitor no lobby de um hotel em Turim, perguntando-lhe se era possível contar a história de Sandman com vinte e cinco palavras ou menos. Ele pensou por um momento e disse:

“O Mestre dos Sonhos aprende que uma pessoa deve mudar ou morrer, e toma sua decisão”.

Poder de síntese instintivo e dos mais mordazes do Mestre dos Sonhos britânico. É exatamente a essência da epopeia de Morpheus durante os setenta e cinco capítulos do título. Sandman traz para o microscópio uma entidade antropomórfica que concentra uma ideia abstrata, só que no fundo, o gibi lida com um protagonista tão falho e imutável quanto qualquer reles mortal. A diferença é que essa criatura passa setenta anos aprisionado em um minúsculo círculo de contenção, dentro de um porão escuro; e eis que quando consegue, finalmente, se libertar desse cativeiro, ele parte numa jornada para retomar a sua vida.

Antes alguém com convicções inabaláveis e avesso a mudanças, dali para frente, pouco a pouco, o leitor começa a notar diferenças sutis no protagonista. Nada, porém, que o desvirtuasse ou desfigurasse seu Eu, tanto é que seu destino está atrelado a um limite que, para o bem ou para o mal, se negará a cruzar. Como qualquer um, ele experimentou uma situação limítrofe que o obrigou a voltar para dentro de si e rever posturas anteriores.

A pandemia ainda está em curso e mesmo com a promessa da vacina, estamos nós mesmos presos a um círculo de contenção¹. Como disse, ficcionalmente, foram setenta anos de cárcere que, na prática, atravessamos em quinze ou vinte minutos na leitura de exatas trinta páginas. Quer dizer, um passeio no parque perto da realidade paralela de dez meses de distanciamento social. Morpheus também sai perdendo quando lembro que ele é apenas um construto artístico e o verbo mudar é apenas um plot narrativo; portanto,  mudar na vida real são outros quinhentos… mil.

¹ Ou claro, aqueles que ainda se importam em estar dentro de um.

Diferente do meu amigo onírico, quero dar as boas-vindas a alguns ajustes. Longe de mim querer ser uma versão melhor de mim mesmo; além de brega, uma agenda assim não é realista e só pode resultar em frustração. Não, eu só quero mesmo o que imagino ser o desejo obstaculizado de muitas pessoa nesse momento: passar mais tempo com os seus. Voltar a poder abraçar os meus. Viajar e tomar umas cervejas com aquele grilo falante, o guru espiritual, a voz das intros, mineiros baianos, mineiros curitibanos, baianos pernambucanos, virgens paulistas, enfim, fazer pessoalmente o que já fazemos virtualmente.

Uma coisa que eu definitivamente quero mudar em mim é isso: ser mais presente. Se vou conseguir, são outros quinhentos… milhões.

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Outro argumento de Sandman que choca com nosso atual estado de coisas é a moral da história contida em Vidas Breves (#41-49).

Para tanto, a maneira como Neil Gaiman constrói a reputação do perpétuo Destruição é digna de nota. Sua primeira aparição² no presente só se dá na edição #47, todavia de tanto ser mencionado nos capítulos anteriores, cai nas graças do leitor, inclusive é possível sentir com sua ausência um misto de amargura e saudade, coincidentemente os mesmos sentimentos dos outros irmãos. O bom senso seria procurá-lo e saber por que cargas d’água o irmão pródigo pulou fora. A grande ironia é que só depois de trezentos anos alguém se ofereceu para tanto, justamente a aresta mais complicada da família, a irmã caçula, Delírio.

² Antes disso, Destruição teve uma breve participação na fatídica Canção de Orpheus, gerando, inclusive, um ressentimento com Morpheus por conta do apoio moral dado ao seu filho enlutado; algo que, por sinal, só resultou em autodestruição. Em outros termos, Destruição o ajudou a se autodestruir

Desejo e Desespero são irmãs gêmeas, sendo que a última é mais nova e dificilmente contraria as vontades da primeira. Assim, vê-la (Desespero) ignorando as tramoias da outra, quando esta lhe pede ajuda para armar alguns percalços na busca de Delírio por Destruição, é um tanto quanto curioso. A verdade, no entanto, é outra. Desespero sofre em silêncio com o sumiço do irmão, tanto que na mesma edição #41, resta imortalizada uma das passagens simbolicamente mais fortes de toda a trama. Na ocasião em que ouve a proposta de Delírio, discretamente dá início a uma peculiar autoflagelação para sentir alguma coisa mais forte que a saudade do pródigo, ou seja, a dor – confira: 010203.

Obstinada com a ideia, seria mais difícil dissuadir Delírio que propriamente encontrar Destruição. Percebendo isso, Morpheus resolve que ajudá-la nessa empreitada viria a calhar como uma maneira de velar por sua segurança e, pessoalmente, de esquecer a desilusão amorosa que há pouco sofrera. Assim, partem numa jornada no mundo desperto para investigar e refazer os últimos passos do irmão no autoimposto exílio. O que não contavam é que algumas forças externas se intrometeriam e dificultariam a demanda.

A inevitável reunião acontece e, criativamente falando, serve ao propósito de aparar pontas soltas e acender um incandescente sinal do que o futuro reservaria para o Morpheus. Por outro lado, o centro das atenções era Destruição e a revelação dos motivos que o levaram a abandonar seu reino. Trata-se de minha passagem favorita de Sandman, sobre a efemeridade da vida, que mesmo as existências dos Perpétuos são breves, limitadas e nenhum deles durará mais do que aquela versão do universo. As coisas são criadas, duram por algum tempo e desaparecem. Impérios, cidades, poemas e pessoas. Átomos e mundos. E um vírus tinhoso.

2020 está chegando ao fim e pessoas no mundo todo já começam a ser vacinadas. Em algum momento, cedo ou tarde, seremos também e as memórias amargas desse ano ficarão para trás. Na verdade, espero que nem tudo fique para trás e em 2o22 nos lembremos do quão caro pagamos por nossas escolhas. Escolhas que contribuíram para abreviar 180 mil vidas breves.

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O potencial dos quadrinhos como arte, literatura ou linguagem autônoma só é inteiramente perceptível quando ao menos uma vez na vida fazemos uma peregrinação pelo Sonhar. Reler Sandman para gravar nossos programas, além de gratificante, significa retornar à Meca das narrativas gráficas.

Se jamais fez isso, está mais do que na hora de fazer.

Bons sonhos e boa viagem.

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